EU NÃO ERA GAY, EU ERA UMA CRIANÇA


Durante toda a minha infância sempre houve, por parte de minha família, uma enorme vontade de que eu tivesse amizade com outros garotos. Quando eu era muito pequeno, lembro-me de brincar tanto com meninos quanto com meninas, mas na medida em que o tempo foi passando e meu jeito delicadofoi ficando mais evidente, a amizade com garotos começou a rarear.
Lá pelos 11 anos, no entanto, mudaram-se para o meu prédio dois novos garotos. Não lembro-me dos nomes, infelizmente. Recordo-me apenas de que um tinha a minha idade e outro era mais velho. Lá pelos 16. Era bonito e falava muito das namoradas que tinha. 
Nos encontrávamos no salão de festas – no meu prédio não tinha playground– e, um dia, o mais novo perguntou em qual colégio eu estudava e, logo depois, completou: 
"É perto do meu colégio. Amanhã nós podemos te dar uma carona".
Subi as escadas esbaforido, na felicidade gigantesca de finalmente dar a minha mãe o orgulho de eu ter um amigo menino. 
No dia seguinte, eu acordei cedo, vesti o uniforme e esperei o interfone tocar. 
Tocou.
"Estamos descendo" 
Sentei no banco de trás bem ao lado do meu colega de 11 anos. O rapazinho de 16, que sentava na frente, se virou para trás:
"E então, para qual time você torce?"
"Nenhum, eu torço para o time que ganha?"
"Tá certo." 
Eu não sabia conversar sobre futebol, nunca soube!, mas eu já lia livros sem figuras, gostava de ver Changeman e Jaspion no programa da Angélica, adorava vampiros, lobisomens e histórias de terror. Eu tinha muito assunto para conversar! 
Mas ninguém estava interessado. De imediato, o pai, que estava dirigindo, percebeu que eu era mais afeminado que os seus filhos. 
Teria sido a minha voz? 
Virou-se, então, para o irmão mais velho e perguntou com nojo na voz: 
"É esse o colega novo de vocês?".
Ninguém falou nada no caminho até o colégio. Os dois garotos estavam envergonhados e amedrontados e o pai não conseguia disfarçar o incômodo de estar transportando uma criança gay.
Num dado momento, o ambiente ficou tão insuportável que o pai parou o carro.
"Desce", ele disse para mim.
Eu não questionei. O que um garoto de 11 anos poderia fazer frente àquela situação?
Desci. O carro partiu e eu fiquei parado na esquina da Generalíssimo Deodoro com a Governador José Malcher, a alguns quarteirões de distância do meu colégio. 
Minha mãe nunca soube deste episódio. Ela nunca soube de tanta coisa! 
E, no dia seguinte, sem desconfiar de nada, ela vestiu-me com o uniforme do colégio mais uma vez e esperou o interfone tocar, com a carona dos novos moradores do 3o. andar. 
O interfone nunca mais tocou.
Foram muitas as vezes, durante todos estes anos, em que me perguntei o que eu teria feito de tão ruim para aqueles meninos? Pergunto-me também quem seria eu hoje se não tivesse sido abandonado no meio da rua aos 11 anos? 
Quantos homofóbicos são criados em casa?
Domingo passado, no almoço de nossa família, uma pessoa disse que proibia seu filho de brincar com um colega de escola, porque o garotinho tinha trejeitos. Ou seja, as mesmas pessoas que, junto comigo, enfrentaram tudo, hoje fazem qualquer coisa para afastarem de seus filhos o fantasma da homossexualidade, mesmo que seja proibindo uma criança de brincar com outra.
Até hoje eu tenho vontade de reencontrar os filhos do homem que me deixou, aos 11 anos, na Generalíssimo com a Governador José Malcher. Queria muito saber se eles se tornaram tão melhores que eu. Se são homofóbicos, se são ricos, se moram no Oriente Médio e são donos de centenas de poços de petróleo. Ou se, simplesmente, são pessoas ordinárias como eu sou, como você é, como todos somos. Fico curioso para saber qual tragédia ocorreria em suas vidas ao se relacionarem com um amiguinho que não gostava de futebol, mas gostava de Jaspion e de vampiros. 
Decerto, nunca os encontrarei. Não lembro seus nomes e, tenho certeza, de que eles nem se lembram desse episódio. Pois damos muito pouca importância para coisas que só doem nos outros.
Mas desejo toda felicidade!
Que o mundo lhes tenha dado mais amor do que o pai deles me deu. E que seus filhos jamais sejam abandonados numa calçada qualquer...
numa rua qualquer... 
por um homofóbico qualquer...
a caminho da escola.

P.S.: Aos 11 anos, eu não era gay. Eu era apenas uma criança.


SAULO SISNANDO
e-mail: saulosisnandoescritor@gmail.com

26 de março de 2019

*Neste blog e nestes textos, eu estou falando de mim. Sei que a questão LGBT+ e das demais minorias é plural, por isso sou tão pessoal aqui. Espero que outras pessoas se identifiquem, mas entendo aquelas que viveram outras histórias, outras dores, outras guerras.
Estou falando de um tema, mas não ouso falar por todos.
Comentem abaixo, curtam minha página no facebook ou me escrevam.

Comentários

  1. Saulo, essa experiência coletiva de ser gay e sofrer esse ostracismo muito cedo é uma ferida que todos nós LGBTs carregamos, em maior ou menor grau. Ressoou em mim de forma intensa. Eu sinto muito que você tenha passado por isso. Estamos juntos

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  2. Eu me identifiquei. Parabéns pelo texto, escreve muito bem!

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  3. Sou hetero, mais e se eu não fosse? fico mto triste d ouvir tantas histórias absurdas de um preconceito mais absurdo ainda. Caráter não tem cor, sexo ou religião. Só desejo que as pessoas entendam que viveríamos num mundo bem melhor se houvesse mais empatia. Pertencemos a uma só raça, a HUMANA, pena que muitos esqueceram disto. 😞

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  4. Fiquei ensaiando algumas coisas pra comentar, mas não há muito o que dizer. Com o seu exemplo recente percebe-se que ainda estamos mais sozinhos do que juntos.

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  5. Saulo, vc emociona a todos c suas palavras! Meu coração está c vc nesse momento. ❤

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  6. Obrigada por partilhar. Talvez outros tantos que passaram, passam ou passarão pelo mesmo, leiam estas palavras e se fortaleçam, se sintam menos sós. E quem nunca passou, passa ou passará, tenha empatia e perceba que existe "gente" por trás destas atitudes lamentáveis.

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  7. Texto mto triste esse! ate onde vai a ignorância das pessoas?mas obrigada por postar.

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  8. A idia de negação do outro é uma construção histórica e precisa ser revisada o tempo todo. Nesse momento em que vivemos uma escuridão de humanidade, é essencial pensar, defender e promover uma outra humanidade possível. Meu estado de afetos não me faz melhor ou pior que o outro, meu respeito ou desrespeito pelo próximo é que me define. Sendo hétero nunca entendi alguém ter fobia (medo) de outras expressões afetivas, acho que o medo é na verdade dúvidas sobre suas afetividades.

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  9. As vezes me pergunto que tipo de raças nós pertencemos

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  10. Muito triste ver isso acontecendo nomundo de hj.Ainda mais quando Jesus Cristo nos pedi para amarmos uns aos outros.

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  11. Minha garganta fechada, meu coração sangrando pela dor que você deve ter sentido. Talvez sua mãe não soubesse dos fatos, masdeve tê-los sentido da mesma forma que você. Transmito-lhe todo o meu amor e empatia, meu querido. Seja feliz!.

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  12. Lindo texto. Fico muito triste por certos humanos agirem assim

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  13. Meu querido,sou hétero, mas doeu em mim a sua história.
    Lembrei de um primo criado comigo que sofreu essas situações. Hoje é um homem lindo, admirado, porém com uma opção sexual diferente.
    Sabe, eu hoje tenho quatro filhos, apenas um ainda adolescente. Sempre os instruídos a respeito de amizades. E para ser bem sincera, nunca quis que nenhum fosse gay ou lgbt, e entenda, não por preconceito e sim por medo do sofrimento deles. Pois toda mãe que ama seu filho sofre junto.
    Graças à Deus, não criei homofóbicos. Todos tem grandes amigos com.outras opções sexuais. Amigos irmãos mesmo. Os ponta firme!
    O que me assusta hoje é a modinha. Alguns dizem se tornarem gays e lgbt (daí
    eu não entendo). Assim como você, meu primo, muitas pessoas já nascem assim. Não é um defeito, nem doença contagiosa, é como ser loiro ou moreno. Você é uma pessoa linda! Dá para sentir o que flui da sua escrita. Siga em frente como Dory " continue a nadar...continue a nadar!"
    Bjs no seu coração ❤️

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  14. Se as pessoas se colocassem no lugar das outras em todas situações, seja sexual, racial, étnica ou até mesmo dos animais, e se sensibilizassem com os sentimentos alheios, com certeza o mundo seria bem melhor, principalmente porque nossa vida é passageira, e após o desfecho desta vida terrena para o outro lado, onde não tem rico ou pobre, feio ou bonito, branco, amarelo ou preto, se todos nos tivéssemos esta consciência, o comportamento também seria outro!

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  15. Saulo, eu não sou homossexual, mas quando menina, fui discriminada várias vezes por ser pobre. Sofria e não entendia porque as pessoas não enxergavam o meu valor como pessoa. Eu era inteligente, estudiosa, educada e como você, uma criança...

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  16. Saulo nao achei nem uma palavra de consolo ao episódio q passou senti uma dor no coração,só me veio um nó na garganta e uma profunda tristeza espero q um dia essa dor em vc tbm passe. Agora só consigo chorar

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  17. Boa tarde, Saulo. Lendo sua história, lembrei que quando eu era criança, tinha um menino na minha sala de aula, chamado Diego, que sempre vinha com apelidos homofóbicos para o meu lado, um dia ele quis me dar aula de como ser "homem", na visão dele. Os anos se passaram, eu fiquei mais velho, e em meio a faculdade um dia ele me encontrou no facebook e me mandou um texto gigantesco de como ele se arrependia do que ele fazia comigo, e de como ele se sentia mau todos esses anos por tudo o que ele fez pra mim no colégio. Claro, que depois de tanto tempo, eu o perdoei, achei uma atitude muito humana, de lembrar o que o fez e de se arrepender. Bom, essa é a história que gostaria de compartilhar.

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  18. Excelente texto! Felizmente, nunca sofri bullying, e olha que tenho "trejeitos" desde que nasci. Mas sempre me impus quanto às minhas qualidades. Mas é o de sempre: temos que nos esforçar o dobro pra "compensar" nossa sexualidade não-normativa. Adorei seu blog! Só não encontrei o botão para seguir...

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