ONDE ESTÁ VOCÊ AGORA?

 


Hoje ele me voltou à mente. Mas com aquela imprecisão de detalhes das pessoas jamais encaradas no rosto. Afinal, não fomos amigos! Surgiu como uma bruma... um fantasma... um vulto distante como sempre fora.

Seu nome era Flávio, ou pelo menos eu acho, pois a minha memória falha quanto aos detalhes sem importância. E, como eu, estudava no Colégio Marista Nossa Senhora de Nazaré. Todas as semelhanças entre nós, entretanto, se esgotavam nas salas de aula a se ladearem e no horário da Educação Física, pois, diferente de mim, ele era descolado, e andava com passos folgados, e usava umas calças frouxas de malha, e tinha um cabelo grande e ruivo. 

Diferente de mim, sobretudo, ele fazia dança. 

Nos anos 90, não recordo de nenhum outro garoto enfrentar todos os meninos e escolher “dança” como atividade extra no colégio. Embora, de longe, nem parecesse enfrentar nada, ele simplesmente possuía coragem de ser quem era.

Quando eu saía da natação, sempre passava em frente a sala de dança e, mesmo cheio de meninas, procurava por ele. Eu queria vê-lo... de longe... pelo vidro... dançando. Não que eu fosse apaixonado por ele... eu não o era!... mas porque eu o admirava.

Eu admirava o fato de ele dançar e ninguém chamar ele de gay e eu, embora fizesse natação, vivia sendo zombado pelos demais alunos da escola. Eu o reverenciava por ter tido coragem de contar aos pais acerca de sua paixão pela dança. Lá no fundo, eu o invejava. E era uma dor de cotovelo nefasta e profunda.

Não sai de minha memória o dia no qual ele protagonizou a abertura dos jogos, vivendo o príncipe amaldiçoado em A Bela e a Fera. Nós não ganhamos, pois sempre perdíamos para a série anterior, mas ele estava lindo, dançando e, sem dúvida, me representando e sendo eu. Afinal, naquela época, eu era um belo príncipe preso a uma fantasia monstruosa e machista.

Talvez o Flávio e a sua coragem tenham me feito amar a dança. E quando, com 32 anos, entrei para o ballet, foi apenas para imitá-lo e para libertar o menino de 13 anos, ainda vivente em mim.

Não sei mais por onde ele anda... por onde vive... onde ele acontece. A última notícia dava conta de quando ele fora instrutor de patinação no gelo em um shopping da cidade e, embora já tenham se passado 20 anos, eu nunca patinei no gelo. 

Espero que esteja bem. Torço para ter se tornado algum correspondente estrangeiro no Cazaquistão, ou para estar ensinando ballet para garotos na Escola Bolshoi. Na verdade, eu me conformo até com o fato de ele continuar por aqui, vivendo nas imediações da Avenida Brás de Aguiar e funcionário público, como eu, afinal não é tão ruim assim, desde que esteja bem e não tenha virado homofóbico ou de extrema direita.

Se tiver casado e com filhos... que ilumine suas crias como a mim vinte cinco anos antes. Torço para ter mantido o cabelão ruivo, e para não ter levado algum tiro, nalgum dia, nalgum semáforo, desse nosso mundo tão violento.

Torço para este texto ser compartilhado até chegar ao seu conhecimento. Pois é importante saber-se inspirador de outrem com tão pouca idade. Ele foi o sol de um menino eclipsado. A sua arte mudou a vida de um pequeno ser que ele nem sequer conheceu. 

Essa é a verdadeira razão da arte — e é a minha busca nas letras — inspirar os outros e salvar aqueles sem ninguém.

Obrigado, Flávio, por dançar!


SAULO A. SISNANDO

23 de dezembro de 2020.

Comentários

  1. Não tenho certeza se o Flávio chegará a ler este texto, mas acho lindo e inspirador o modo como te colocas nele de forma tão honesta.

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  2. Suas letras também são inspiração.Emocionante esse texto! 😘

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  3. Lindo texto! De repente me vi dançando naquela sala, à época das aulas de GRD na década de 90. Tomara que vcs se reencontrem novamente 😊

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