Sobre essa saudade de lugares



Aos meus leitores e amigos, deixo uma pergunta: por quanto tempo as pessoas mortas continuam morando em nós? 
Sepultado há mais de um ano, não falarei hoje sobre a saudade de meu pai, mas sobre o quanto... dia após dia... a ausência de seu corpo, dá lugar a morada dele em mim. 
Hoje, e a todo tempo, em pequenas ações e movimentos, vejo-me reproduzindo suas peculiaridades. Percebo-me, por exemplo, assistindo filmes de faroeste de madrugada ou me preocupando, como nunca fizera antes, com as pessoas que tem a mania de deixar a porta do apartamento aberta, mesmo o mundo estando tão violento. 
Como meu pai, também me encontro às vezes sofrendo pela saudade – não apenas das pessoas – mas dos lugares de meu passado.
Meu pai era assim! Nos anos que antecederam sua morte, muitas vezes sugerimos uma viagem de regresso a Juazeiro do Norte, sua cidade Natal, e ele, irredutível, dizia: “Não quero mais voltar lá”.
Agora, eu o entendo com perfeição, pois são incontáveis os lugares de meu passado que, só de estar perto, já sinto um frio na coluna e uma vontade louca de chorar... pelo que?
Não sei se me entendem, mas, mesmo sendo o palco de inúmeras de minhas dores, há 26 anos não tenho coragem de entrar naquele grande colégio amarelo, erguido na Avenida Nazaré. Pois, nalguma piração de minha cabeça, acredito na existência de um pequeno Saulo, lá dentro, por entre os corredores de pé direito alto, conversando com a Neyara e sonhando em, um dia, se tornar um grande ator de Hollywood. 
Não sei se o Colégio ainda tem aquele enorme Salão Vermelho encerado e se meu nome ainda consta na placa de ex-aluno, mas não importa!, pois na minha memória, o pequeno Saulo ainda veste o uniforme azul e branco e pega o Aeroclube às 6h45 da manhã, para não chegar atrasado para a oração. Na realidade existente apenas em minha cabeça, a Neyara é a pessoa mais importante da minha vida, ensaiamos todas as tardes para a abertura dos jogos e o nome das bibliotecárias ainda é Suzy e Rose.
De igual modo, meu coração dá um solavanco quando ando pela Cidade velha, e pego caminhos loucos só para passar na Rua Veiga Cabral e ver, de longe, o prédio onde vivi os momentos mais felizes da minha vida. E mesmo sabendo da passagem do tempo e de como todos os seres se perderam pelo labirinto das próprias jornadas, vez por outra entro na OLX procurando algum anúncio de venda do apartamento no 4º andar, de frente para a rua, que – sem saber o quanto me faria falta – meu pai vendeu na década de 90 e, agora, com o dinheiro que ele mesmo me deixou, sonho em adquirir novamente aquele lugar. Mesmo sabendo que não tem porteiro, que o elevador sempre enguiça e a escada até o 4º andar é exaustiva... mas, entendam, em nenhum outro apartamento, senão lá, reside a memória de meu irmão me ensinando a cantar “As Time Goes By”, enquanto olhávamos pela janela, esperando meu pai chegar do Banco do Brasil.
Como meu pai, também tenho muito medo de voltar a Juazeiro do Norte. Porque o cheiro de grama cortada ainda é muito vivo e o céu estrelado é o mais bonito de todos. Eu morrerei sentindo que, de alguma forma, fui arrancado de lá. Mas um Saulo de sotaque cearense está, decerto, por ali... vivendo... existindo ainda... e é casado... e tem filhos... e tem também um cachorro com nome de peixe... e mora naquela mesma casa amarela da Lagoa Seca.
De todos os meus lugares nostálgicos, hoje só me resta este apartamento. E ele me dá tanto medo! Medo de, amanhã, ele deixar de ser o que é... aliás, a cada casamento... e a cada morte... ele desmorona um pouco e as rachaduras ficam mais visíveis. Mas lutarei para mantê-lo em pé e penso que, se eu sobreviver a minhas mães, passarei a chave na porta do corredor e habitarei apenas a sala. 
Sim! Louco de pedra, eu decidi que só assim conseguirei viver para sempre aqui. E todas as vezes nas quais a saudade apertar demais, vou encostar minha orelha na porta trancada do corredor, para ouvir os risos e os passos das pessoas que amei e que, vivas ou mortas, não existem mais.
Como o Deus de minha própria existência, deixarei minha saudade trancada na metade de lá do apartamento. E, nesse hemisfério etéreo, meus irmãos serão para sempre jovens, Mainha ainda dormirá do segundo quarto da direita e a Kika ainda habitará aquele vão entre o móvel e a parede do banheiro. 
Neste vazio, apartado da realidade, nós seremos para sempre nós... 
Como éramos... 
Como deveríamos ser...
E do jeito exato como aprendi a amá-los.
A Deus, peço apenas que esses lugares permaneçam eternizados em minha lembrança... que o céu do sertão seja sempre estrelado... e que meu pai, de alguma forma impossível, esteja me ouvindo dizer: “Pai, eu entendo sua saudade de casa”.

Saulo Sisnando
Sexta-feira, 13 de agosto de 2021.


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