SOBRE TRêS e o fim!
“Enfim, ela descansou.”
Foi assim que recebi a notícia da partida da tia Célia, justamente quando chegava para a última apresentação do espetáculo TRÊS.
E não há como não pensar em fins… em encerramentos de ciclos.
TRÊS, minha nova peça, é inspirada no espetáculo Violetango, de Miguel Santa Brígida — mestre no início da minha trajetória como ator e que, justamente nesta semana, me anunciou sua aposentadoria após décadas como professor da UFPA.
Tia Célia chegou um pouco antes. Foi minha professora na 3ª e 4ª séries, no Colégio Nazaré.
Ela morava em frente à minha casa, e todos os dias eu entrava no seu Fusca branco, e Íamos juntos para a escola. No carro, éramos amigos, quase mãe e filho. Na sala, ela era a professora, e eu, o aluno.
Foi com tia Célia que aprendi os tempos verbais e decorei — até hoje sei de cor — todas as preposições da língua portuguesa.
Em sua homenagem, escrevi, em 2019, a peça “O Príncipe Poeira e a Flor da Cor do Coração”. Apresentei no Rio de Janeiro e ganhei vários prêmios. A professora da peça era como tia Célia: uma mulher forte, que ensinava a um menino frágil e gay a viver em um mundo bem difícil.
Eu simplesmente adorava a Tia Célia. Lembro que, no início dos anos 90, ela, já com 45 anos, se casou pela primeira vez. Achei aquilo o máximo. Porque ter 45 anos, nos anos 90, não era o mesmo que hoje. Todo mundo da rua já a chamava de solteirona — e ela simplesmente foi lá… e casou.
Que mulher incrível!
Ela chegou a assistir a uma peça minha — A Outra Irmã, na Casa Cuíra. Foi nosso reencontro depois de 30 anos.
Eu queria muito que ela tivesse visto o Príncipe Poeira, mas me consola ter dito que era uma homenagem a ela em uma de nossas várias conversas pelo WhatsApp. Eu disse, inclusive, que a atriz, Nedira Campos, a lembrava muito na sua juventude.
O espetáculo TRÊS — sobretudo hoje — me fala sobre o fim dos ciclos. E sobre a importância de vivê-los intensamente.
Quando termina, na chuva que escorre e foge pelo corpo dos atores, temos a sensação de que tudo vai recomeçar. Mas de outro jeito.
E nesse (mito) do eterno retorno, hoje, eu tenho a mesma idade que tia Célia tinha quando se casou. E percebo: tudo são ciclos. Círculos eternos.
E assim como tia Célia jamais suspeitou do quanto me inspirava, e Miguel talvez não imaginasse que, 40 anos depois, seu Violetango ainda geraria outros espetáculos e outros afetos… talvez eu também esteja inspirando alguém por aí. Quem há de saber?
Talvez minha arte e minha vida brilhem aos olhos de jovens que eu jamais saberei que toquei.
A verdade é que estamos sempre dentro de algum ciclo — e atravessando os ciclos dos outros.
Até o dia em que alguém disser que eu “descansei” — e eu passe a habitar outros tempos, outros círculos…
Universais, de estrelas e cometas. Que meu espírito siga, e que meu corpo volte à terra, e se transforme em mato, água, bicho…
E outro ciclo se inicie.
Infinitamente.
Saulo Sisnando
13 de abril de 2025
Que linda homenagem
ResponderExcluirEmocionada com suas palavras e sua estória de vida e da tia Célia e tantas outras tias e tios que fazem nós sermos nós.
ResponderExcluirTuas palavras sempre me inspiraram e agora me confortam meu amado.
ResponderExcluirQue texto lindo. Me tocou muito. Bj
ResponderExcluirQuanta beleza no texto e na vida! Que Tia Célia siga em outros ciclos inspirando amor nos seus círculos. E você também siga nos seus ciclos de vida!
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