FINALMENTE, A MEDALHA ou A TEELA SEM CABEÇA

 



Apaixonei-me pela Ginástica Artística em 1988, quando, pela primeira vez na história, o Brasil levou uma atleta para as Olimpíadas: Luísa Parente. Eu tinha apenas 10 anos. Apesar de toda a empolgação de termos uma representante em Seul, os olhos estavam voltados para a disputa entre Yelena Shushunova, da União Soviética, e Daniela Silivaș, da Romênia.

Meu pai, também entusiasta da ginástica, sentava-se na poltrona, e eu, no chão, e juntos assistíamos àquela rivalidade. Eu torcia para Shushunova, com seu solo impecável ao som de um tango, e ele para Silivaș, com sua entrada peculiar na trave de equilíbrio. Silivaș — e meu pai — eram elegantes, enxutos e longilíneos, enquanto Shushunova — como eu — era visceral, intensa e apaixonada. Nossa relação de pai e filho sempre foi marcada por essa diferença estética: ele sempre leu Erico Veríssimo, e eu, Clarice Lispector.

Lembro que gravamos as competições daquele ano em uma fita VHS e, depois disso, passei a assistir repetidas vezes aquelas gravações, revivendo a disputa entre a paixão e a elegância. Certo dia, meu irmão veio até mim e disse:

— Você não pode ficar assistindo a essas competições de ginástica. Esse não é um esporte para homens. Apenas os gays assistem.

Quando questionei se nosso pai era gay também, ele respondeu:

— Nosso pai já é casado e tem filhos, todos sabem que ele não é gay. Mas você não pode assistir.

Mas já era tarde, eu estava apaixonado.

Como eu não podia fazer ginástica, fui matriculado no judô. No entanto, no meu colégio, em uma providência divina, as aulas de judô ocorriam no mesmo tatame das aulas de ginástica. Eu passava horas observando as meninas treinando e sonhando. No canto, havia uma trave de equilíbrio baixa, à altura do chão, e, quando ninguém estava olhando, eu subia nela e fazia minhas piruetas ao melhor estilo Luísa Parente ou Svetlana Boginskaya. Embora mal me equilibrasse, na minha cabeça, eu era o mestre do flic-flac e das piruetas.

Nesse mesmo 1988, encontrei na entrada do meu prédio um boneco da Teela. Os mais novos talvez não saibam, mas nos anos 80 havia uma linha de bonecos inspirados no desenho animado do He-Man. Teela era uma de suas companheiras na luta contra as forças malignas do Esqueleto. A Teela que encontrei não tinha cabeça, e foi por isso que alguém a jogou fora. Mas eu não me importava se ela tinha ou não olhos, boca ou nariz, porque o que me interessava era seu corpo.

Assim, a Teela sem cabeça virou a estrela das minhas brincadeiras solitárias. Com seu corpo escultural e pernas longilíneas — quase como uma Barbie — ela se tornou a atleta número um de minha imaginária equipe olímpica. Eu reproduzia com essa boneca toda a sequência de solo de Shushunova e, quando eu pegava uma fita VHS e a colocava em pé, tinha agora uma perfeita trave de equilíbrio.

Os anos se passaram, e eu continuei assistindo — às vezes até clandestinamente, longe dos olhares do meu irmão — as competições de ginástica nas Olimpíadas. Luísa Parente ainda foi para Barcelona em 1992, eu lembro bem. E quando meu irmão saiu de casa, fiquei mais livre para assistir às competições ao lado do meu pai.

É incrível como, com o passar dos anos, atos e ações tão simples como assistir a uma competição de ginástica pela TV começam a ganhar importância. E hoje, o que mais queria era ainda ter meu pai aqui para dizer: “Painho, meu Deus, somos bronze!”. Mas tenho certeza de que, do Olimpo, ele torceu por nós. Afinal, estamos na torcida desde a primeira atleta. Ele deve estar muito feliz.

Uma das últimas vezes em que conversamos — eu e meu pai — sobre ginástica foi em 16 de agosto de 2018, quando, por complicações de uma pneumonia, em São Petersburgo, morreu a grande Shushunova. Como podia morrer uma mulher tão poderosa?

— Que pena — disse meu pai.

Não sei direito como funciona o céu. Se existe cavalo, solo e barras assimétricas. Aliás, não sei nem se tem TV por lá. Só sei que, com certeza, meu pai assistiu ao Brasil ganhar essa medalha ao lado de Yelena Shushunova e, como ele sempre foi muito polido e educado, deve ter até dito para Shushunova, enquanto assistiam à ginástica pelas telas das nuvens, que ela sempre fora melhor que Daniela Silivaș.

— Que saudade, Pai! E aproveitando que o senhor teve a oportunidade de conhecê-la antes de mim, dê um abraço na ginasta russa e agradeça por tudo que ela fez por mim. Sem Shushunova, eu jamais teria sonhado em ser além de mim e jamais teria ganhado o ouro olímpico por meio de uma Teela sem cabeça.

 

SAULO SISNANDO

30 de julho de 2024

 

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