A felicidade de Lúcia


Quando Lúcia ouviu o curto ranger das dobradiças, acreditou que fosse Virgínia voltando das compras. Mas logo se percebeu enganada, pois não se seguiram ao ringir da porta, aquele cômico chiado da saia de cetim, as sandálias de salto de pau estalando no piso e os sacos plásticos audíveis, ocultando botões, novelos de lã e metros de tecido, que Virgínia saíra decidida a comprar. É!, definitivamente não era a criada, voltando ao final da tarde.
O som reconhecido dos gonzos, ao contrário, seguiu-se de uma carícia suave nas pernas; era Selma, a gata, que empurrara a porta com focinho e viera fazer-lhe companhia.
“Selma”, pensou, “Só mesmo a Virgínia para colocar um nome desses numa gata”.
Lúcia estava à janela, em pé, com a cabeça levemente inclinada para fora, sentindo o cheiro do vento úmido daquela tarde de setembro em Belém do Pará. “Que calor!”, pensou ela. Fora tola ao crer já ser tempo de Virgínia retornar de sua tarde no comércio; o sol ainda lhe ardia muito os braços alvos, postos no parapeito de mármore da janela. Era cedo, e Virgínia só estaria de volta lá pelas sete da noite, para servir-lhe o jantar.
Restava ainda algumas horas e, sozinha, entreteve-se ouvindo as vozes dos que passavam pela rua.
Mas quem eram aquelas pessoas?
Lúcia não as conhecia, ou talvez até conhecesse, mas ela era péssima para lembrar as vozes dos amigos. Isto era incrível!
Apesar da tarde ainda estar no caminho da morte, para Lúcia o céu era escuro. Tudo era escuro. Escuro? Não! Apenas não existia. O tudo não passava de nada. O céu era nada, a janela onde estava era nada, Lúcia era nada. Apenas as vozes, ouvidas longe, eram tudo. “E que tudo!”, pensariam todos.
Ela, aliás, não reconhecia a voz da mulher, pisando forte na calçada, nesse instante. Mas observava, com atenção, todos os traços da transeunte. Os cabelos, a boca, o corpo. E melhor!, ela via como queria ver. Os cabelos eram da sua cor preferida, a boca era pintada por um batom inexistente, cuja cor só Lúcia conhecia: a cor do nada.
Via as roupas e via o que estava por baixo delas. Via tudo: nada. Via.
As pessoas, que perto daquela janela passavam, não sabiam da existência de uma espectadora a apreciar suas vidas atentamente, delicadamente. Via seus rostos, mãos, pés, olhos e, inclusive, via a bela nudez dos corpos. Ela via, até, as bochechas coradas de vergonha de algumas mais alertas. Uma vergonha desnecessária; para quê terem receio de ficarem nuas diante de uma amiga? Sim!, porque depois de passarem por lá, as pessoas seriam suas grandes amigas.
Orgulhava-se de lembrar dos traços físicos de cada uma. Seus corpos e tudo. Talvez se a mesma pessoa cruzasse por ali novamente, Lúcia, com sua péssima memória para vozes, nem se lembrasse de já terem sido apresentadas. Tudo bem!, naquele momento, a pessoa adquiriria uma outra feição. Seu cabelo talvez até mudasse de castanho para roxo. Mas e daí? Para Lúcia era mais outro amigo na solidão.
“Boa tarde, Dona Lúcia! A senhora está tomando um bronzeado?”
Ah!, Seu João... Ela reconhecia essa voz. Passava lá todas as tardes; e, todas as tardes, gracejava sobre o fato de Lúcia ficar exposta ao sol, tamanha hora do dia.
“Estou apreciando a paisagem”, respondeu.
Riram. Lúcia tinha a estranha mania de divertir-se da sua própria tragédia. Riam cruelmente da condição de Lúcia: cega, solitária.
“Como passa sua Estela? Melhorou?”
“Sim, Dona Lúcia, minha esposa está melhor... Muito melhor”, o velho falava sem diminuir o passo, Lúcia quase não o escutava, quando ele completou: “Daremos um jantar no fim de semana, considere-se convidada”.
Lúcia estremeceu! Teve ímpetos de gritar pela janela “Um jantar! Um jantar! Alguém me convida para um jantar”, mas se conteve. Ela sabia que jamais seria convidada para um jantar social; ela era cega! “Quem convidaria uma cega para um jantar social?” Os jantares são para festejar, brindar felicidade, mascarar sofrimentos. Quem vai querer uma cega em um jantar, trazendo para a mesa toda tragédia da vida?
Não! Jamais seria convidada. Seu lugar era ali... Na janela... Ouvindo vozes de pessoas desconhecidas e brincando de recriar, à sua maneira, os corpos alheios. Sinestesicamente brincando: “qual corpo adapta-se a esta voz?”
Duas vozes vinham, por sinal, aproximando-se agora. Uma era grave, máscula. Um homem enorme deveria ter aquela voz. A outra era frágil como a de um pássaro. Piada. Quase escorregando pelo vento.
Num enorme catálogo imaginário, ela pesquisou a roupa, os sapatos, o chapéu. Sim! Aquela dama merecia um enorme chapéu, com um grande laçarote vermelho de fitas que caiam pelas abas e voavam no vento, no mesmo ritmo das palavras. Quem usaria chapéus com enormes laços neste tempo quente? Não importava, o adereço era indispensável para aquela dama.
Para o homem: enormes coturnos e calças verdes... Blusa também verde e impecavelmente passada, presa num cinto negro. Ele era um soldado... Um soldado! Acabara de retornar da guerra, seus passos ainda eram fortes e ritmados, como numa marcha. Os dedos de sua mão, tão unidos como se estivessem prontos para bater continência ao superior. Quantos homens teria matado na guerra? Seis? Dez? Concentrou-se na voz de pássaro e ela mesma se respondeu:
“Vinte sete... Carlos matou vinte sete homens com uma só arma!”, imaginou a maneira garbosa como a moça proferiria aquela frase. Era perfeito!, vinte e sete. A história começava a desenrolar-se na sua cabeça. Criou, com uma exatidão imensa, o momento, como se lembrasse, como tivesse visto de perto, e recordou também do dia em que ele voltou da Europa, em um navio cinza, e disse:
“Preciso rever aquela bela moça de cabelos cacheados e voz de pássaro”.
Ah! Como pensou nela durante a guerra... Comprou-lhe, inclusive, um lindo chapéu de laçarote vermelho, para dar de presente, antes de pedir-lhe a mão em casamento. Eles casariam em breve.
Os sons, no entanto, afastavam-se rapidamente, pareciam ter pressa. “Do quê fogem?”, perguntou a si mesma. Não pôde, porém, obter resposta. Já estavam tão longe...
De repente, a brincadeira das vozes perdeu a graça. Lúcia concentrou-se no cheiro do vento, pois a tarde estava agora nitidamente morrendo; ela ouvia.
Ouvia os gritos do sol se transformarem em suspiros, os verdadeiros pássaros ligeiros batendo asas e voltando aos ninhos, os morcegos movendo-se no vão do forro e prontos para povoarem a noite.
E começou a ver o crepúsculo, via o sol lutando contra os prédios da cidade, via as brancas nuvens ficarem cor de abóbora. Via. E via muito bem!
Conseguia até ver, como sempre, o que mais ninguém via: o vento ficar dourado; bruxuleante. Ah!, o vento daquela tarde moribunda era o mais bonito em muitos anos.
Até que, enfim, a noite esfaqueou o sol. Morto, o céu virou o escuro e o nada... Como Lúcia.
Ouviu novamente os gonzos, e agora seguiram-se o barulho da saia de cetim, as sandálias estourando no assoalho e os sacos plásticos cheios de compras.
Era noite!
“Dona Lúcia, comprei um lindo tecido azul... Macio como nunca vi antes. Venha sentir”, era Virgínia, a criada, aproximando-se e falando tão alto.
Lúcia fechou a janela, virou-se para dentro, contou os passos até Virgínia e tocou o tecido.
Naquele momento, deslizando os dedos pela textura do pano azul, Lúcia descobriu-se feliz, pois um pequeníssimo e indescritível prazer surgiu a partir do escorregar de seus dedos. Ela era dona de sua própria realidade, como ninguém jamais conseguira ser um dia. A cegueira ensinara-lhe os demais minúsculos prazeres da existência do mundo. Ela encarou a criada com olhos turvos e concluiu:
“Sim, Virgínia, é mesmo fabuloso!”




Saulo Sisnando


escrevendo como Saulo Sisnando

Comentários

  1. Sinestésico. Um relevo de sentidos... Muito Legal...

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  2. Gostei muito do conto.
    Realmente fantástico!
    E como sempre acontece comigo, uma coisa me remete a outra.
    Há um conto que também apreciei bastante e que possui temática similar a de "A felicidade de Lúcia". Leia:
    http://www.eastoftheweb.com/short-stories/UBooks/Tone.shtml

    Parabéns pelos belos textos!

    Walter Pena

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  3. A cegueira sempre me assustou muito.
    Fiz uma regressão e descobrí, que fui uma bruxa cega que só enxergava através da bola de cristal e ela matou muita gente,ela era muito má.
    Daí talvez venha o meu terrível medo da cegueira.
    O destino ou a lei da causa e efeito fez-me passar por uma situação de cegueira com minha filha que ficou sem enxergar durante dois meses.Eu fiquei um pouco cega também pois virei seus olhos e posso dizer que os prazeres de quem é cego, são mesmo mínimos, perto dos enormes e infinitos prazeres que alguém que enxerga pode ter.
    Não consigo entender alguém se extasiar ao tocar um tecido macio, depois de ver "a noite esfaquear o sol". Prefiro que Deus me dê minha visão para ver "a noite abraçar o sol".
    Peço a Deus para livrar-nos do "nada" da Lúcia.
    Não resta dúvida que o texto é bonito, real e profundo.Parabéns!!!Bjsssss

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