ELES SEMPRE FORAM HOMOFÓBICOS



A primeira vez que ouvi alguém falar sobre AIDS foi em 1987, quando eu passava férias com minha família no Ceará.
"Os viados estão morrendo, não sabem o que é... apenas morrem!", um amigo da família falou.
"Graças a Deus", alguém respondeu, antes de completar: "é o câncer gay".
Não tenho certeza se usaram a palavra "Gay", mas estou certo do uso da palavra "CÂNCER".
CÂN-CER.
E foi a única vez na vida que ouvi essa palavra ser usada num sentido positivo. Para eles, a AIDS era uma doença milagrosa. O castigo divino a salvar o planeta da praga dos homossexuais, que sujavam tudo com suas mãos frouxas e suas vozes irritantes.
Minha mãe abaixou-se, encarou-me nos olhos com muito medo, e disse: "tá vendo, meu filho, o que Deus faz com os viados?"
Eu tinha apenas 9 anos. Mas eu já era gay. Eu sempre fui! E doeu demais descobrir que, tão pequeno, eu já era tão odiado por Deus. Não importava o que eu fizesse, o câncer gay me mataria em breve. 
Eu soube, então, que por toda minha vida eu seria só. E morreria só. Sem Deus!
Poucos anos se passaram, quando novamente o assunto voltou à tona: 
"Nós preferiríamos ter um filho assassino a um filho gay." 
Não falaram com raiva, não tinham violência na voz. Só honestidade. Sinceridade... E talvez um desejo de que, ao ouvir isso, eu  conseguisse deixar de ser quem era para fazê-los feliz.
Por essas coisas, eu demorei muito para me assumir gay... Embora todos já soubessem. De fato, nunca cheguei para o meu pai e contei. Mas ele sabe... claro! Conhece meu namorado... e, por sinal, se dão muito bem. Meu namorado dá aulas de computação para ele nas horas vagas e meu velho, de 80 anos, entrou finalmente no Facebook... reencontrou até antigas namoradas! De vez em quando, eles vão ao banco e meu namorado o auxilia com tantas senhas, e códigos, e digitais. Colocam antigos discos de Nelson Gonçalves na vitrola que comprei, cantam juntos, buscam fotos de Gina Lollobrigida no Google e, dia desses, foram os dois para um sarau da melhor idade... Mas, infelizmente, tiveram de voltar cedo porque meu pai tem problemas urinários.
Meus irmãos héteros se casaram. Têm seus filhos. Esposas. Novas famílias. Não são relapsos (não estou acusando ninguém, numa história dessas não há carrascos), eles até aparecem aqui 2 ou 3 vezes por semana e aos domingos. Mas não medem, às três da manhã, a pressão da tia idosa que nos criou.
No entanto nada disso faz com que, como em 1987, eu continue me sentindo sozinho. Parece que sempre estarei pedindo a eles que me deixem viver sem o fantasma de uma doença cruel que mata os imundos. Desejaria voltar ser criança e levar um abraço de minha mãe, seguido pelas palavras: "eu e Deus te aceitamos como você é, meu filho".
Hoje, ainda tenho vontade de perguntar, se eles prefeririam ter um filho assassino a um filho gay. Mas não faço essa pergunta porque, após 32 anos, eu não sei qual será a resposta.
Então, prefiro viver na ignorância de ser amado como sou.


Saulo A. Sisnando

17 de janeiro de 2019

*Neste blog e nestes textos, eu estou falando de mim. Sei que a questão LGBTI+ e das demais minorias é plural, por isso sou tão pessoal aqui. Espero que outras pessoas se identifiquem, mas entendo aquelas que viveram outras histórias, outras dores, outras guerras
Estou falando de um tema, mas não ouso falar por todos.
Comentem abaixo, curtam minha página no facebook ou me escrevam saulosisnando@hotmail.com

Comentários

  1. Depoimento sensível, lindo e corajoso. Amo tua sensibilidade ao escrever.

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  2. O preconceito é velado, mas existe. Com meus amigos gay percebo que sofrem muito pela rejeição, mas os que são aceitos pelos pais são mais felizes. Eles me fazem confidências e não é fácil não, a aceitação dos pais é fundamental para eles.

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