Deus. E o menino gay.





A primeira vez que subi num palco, foi aos 15 anos. Eu tinha escrito uma peça de teatro para apresentar num festival do colégio. Nessa época, eu já sabia que aquele seria meu futuro e convidei minha mãe para assistir a apresentação. Queria convencê-la de que o teatro era um caminho sem volta.
O auditório estava lotado. 
As cortinas se abriram. Aquele frio na barriga apareceu. Mas poucos segundos depois de eu entrar em cena, um grande coro ecoou pela plateia. Todos os alunos daquele colégio católico – ou quase todos! –  gritaram harmoniosamente: 
"Viado... Viado... Viado... Viado..." 
A melodia repetiu-se várias vezes durante a apresentação e, ao final, não tive coragem de participar do agradecimento. Fiquei muitos minutos escondido pelas coxias e quando saí de lá, o teatro estava vazio. Exceto pela presença de minha mãe, que – embora estivesse tão humilhada quanto eu – segurou no meu ombro e disse: 
"Foi uma boa peça, meu filho. Você tem futuro!"
Não foi a única vez que sofri bullying. Diariamente, antes de seguir para a sala de aula, eu parava alguns minutos na capela do colégio. De joelhos, eu sempre pedia duas coisas: para não ser chamado de viado e para não apanhar na hora do recreio. E pedia com toda a fé que uma criança podia ter... 
Mas Deus nunca me atendeu! 
Alguns professores riam quando o coro homofóbico ecoava na sala. E ecoou muitas vezes! Outros fingiam não ouvir.
Uma vez, no recreio, jogaram um tijolo na minha cabeça. "Sai daí, viado!" 
Minha mãe foi me buscar... ninguém falou nada. Nem ela. Nem eu. Nem a professora. O que fazer, afinal? Todos já estavam convencidos de que a vida era muito difícil para aqueles que haviam ‘vindo’ gays.
Na minha primeira eucaristia, quando estava com a hóstia na boca, rezei e pedi a deus para que, em contato com o seu corpo, ele me libertasse da maldição de ser gay.
Ele também não agiu naquele dia. 
Revoltou-me demais saber que deus era tão impassível diante do sofrimento de uma criança. Zangou-me saber que minha mãe, tão boa!, seria castigada com um filho gay.
Já neste tempo, comecei a questionar a existência daquele Deus homofóbico. 
Outro Deus, no entanto, me respondeu.
Pouco tempo mais tarde, caiu em minhas mãos um livro chamado "O mundo assombrado pelos demônios", do Dr. Carl Sagan. E de uma forma muito estranha, eu comecei a descobrir o ‘meu’ próprio deus. 
Os livros de Carl Sagan falavam sobre as estrelas, a morte, as várias dimensões do universo, a via Láctea. E eu comecei a pensar que, se Deus realmente criara o universo com dimensões que não conseguimos nem imaginar, ele não poderia ser tão mesquinho e preocupado com a sexualidade de jovens de bom coração. 
Ele tinha de ser muito maior do que isso!
Quando eu lia aqueles livros, eu me libertava da mesquinharia de alguns ditos religiosos medíocres e fiscais de bunda. 
Parecia que o próprio deus tinha me escolhido para me entregar aqueles livros e para me fazer perceber o quanto ele era grande, eterno, sem início nem fim. 
Os livros me fizeram perceber que Deus não apenas me aceitava gay... Ele me amava por ser gay. 
Ler Carl Sagan, Richard Dawkins, Oliver Sacks, Stephen Hawking, e tantos outros, me fez questionar não apenas a existência de deus, mas ter certeza de que aquele deus do pecado não tem como existir se pensarmos na grandiosidade do cosmos. Por isso, toda vez que alguém disser que deus não aceita os gays, pense nas infinitas explosões de supernovas ocorrendo pelo universo. Deus não é pequeno assim!
Me perguntar se deus existia me fez querer ser feliz no presente, ao invés de reprimir meus desejos, para esperar uma redenção que (sim!) pode não existir. 
Temos de ser felizes hoje... Pois tudo pode ser só poeira.
Saber que, ao me comparar com o universo, sou muito menor do que um grão de areia... Saber que se a idade cósmica fosse de um dia apenas,  a existência humana apareceria apenas nos dois segundos finais. Sim! Em todas as 24h do tempo da existência, Deus viveu sem nós, apenas para nos mostrar o quanto somos nada e o quão pretensiosos são esses homofóbicos que carregam a procuração de um Deus tacanho.
Hoje, cada vez que beijo o meu namorado, e sinto no meu peito a energia intensa que se chama amor e eu sei que deus está em mim. 
Cada vez que sento na frente do computador para escrever, eu sei que deus, em forma de paixão, desliza pelo teclado. E eu sei que este mesmo deus, como poeira cósmica, traspassa as telas que nos separam e toca os corações de tantos que sofrem e não se aceitam como são.
Eu não sei como esse deus, que criou o tempo e os buracos negros, é... mas tenho certeza de que ele nos quer inteiro, e não fragmentado... ele nos quer ver usando todo o nosso corpo para produzir a energia mais incrível... o amor. Mesmo que este amor seja por alguém do mesmo sexo.
Saiba que toda vez que o nosso coração bate mais forte, 
Toda vez que nosso peito explode de felicidade, 
Toda vez que tiver paixão envolvida... estaremos fazendo Deus feliz.
seja feliz... 
e ame... 
e dance... E dance muito!
Um dia, quando tudo findar, nós encontraremos deus dançando entre as estrelas. Numa dança cósmica que só entenderemos na morte. Pois dançar, é uma das formas de amar... 
E o nosso deus é um grande bailarino!


SAULO SISNANDO
e-mail: saulosisnandoescritor@gmail.com

22 de fevereiro de 2019

*Neste blog e nestes textos, eu estou falando de mim. Sei que a questão LGBTI+ e das demais minorias é plural, por isso sou tão pessoal aqui. Espero que outras pessoas se identifiquem, mas entendo aquelas que viveram outras histórias, outras dores, outras guerras
Estou falando de um tema, mas não ouso falar por todos.
Comentem abaixo, curtam minha página no facebook ou me escrevam.

Comentários

  1. Embora não acredite em Deus, esse Deus que castiga, esse Deus que só nos mete medo, creio que nesta imensidão cósmica deva existir um Deus que dance. Lindo texto Saulo.

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  2. O mais belo e sincero texto que já li. Sempre vi Deus nessa grandiosidade,nunca de forma medíocre em "os homens" o colocam.

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  3. Minha vida foi descrita no que cerne a religiosidade... eu criado em berço evangélico, sempre me martirizei por ser oq sou.
    Jejuns, orações, ofertas... tudo para que Deus tirasse os desejos homossexuais de mim.
    Desde criança com isso dento e eu acabava sendo homofobico com os outros para tentar criar um escudo.
    Enfim, sou gay! Sou gay! E amo ser oq sou.
    Vi no estudo uma forma de conseguir minha independencia e viver a minha vida.
    Estou andando e o Deus de amor tem me ajudado.
    Obg pelo texto.

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  4. Que texto lindo. É especialmente interessante, neste caso, o detalhe de que você coloca uma observação esclarecendo que seus textos são sobre suas próprias questões, porque considero este um texto que nos enriquece a todos, independente de origem, etnia, idade ou orientação sexual.

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