É possível ser gay e feliz?



De todas as violências que sofremos na vida, nenhuma dói mais do que aquelas selvagerias praticadas pelas pessoas que fomos obrigados a amar. Nossos parentes.
Não sou do tipo que gosta de romantizar situações violentas do meu passado. Mas gosto de olhar para o lado bom de tudo. Por isso, sem medo de errar, digo que o grande estalo da minha vida se deu no natal de 1991 quando, pouco antes da meia noite, minha mãe – por alguma razão – avançou sobre mim, gritando: 
“Não revira os olhos quando estiver falando comigo. Não revira os olhos de novo, senão eu quebro a tua cara. Tu não és viado. Tu não és viado”.
A mão dela estava fechada. Não sei se ela cravava as unhas na própria carne para tentar se controlar ou para me bater. Mas não me bateu.
A sala estava cheia de gente. Família. Amigos. Parentes de toda espécie. 
Todos silenciaram! 
Todos assistiram à cena de longe... imóveis... impassíveis... distantes... alheios.
Poucas vezes me senti tão humilhado quanto naquela noite, afinal minha mãe expôs para todos os conhecidos aquele lance tão íntimo, aquele embaraço nunca antes mencionado em público... Minha mãe – aquela que eu amava sobre todas as coisas – deixara claro, por gestos e gritos, o quanto eu a humilhara com meus olhos revirados e minha boca que se torcia para o canto. 
No rosto dos convidados, havia compaixão e piedade pelo fardo que minha mãe carregaria pelo resto da vida... a infelicidade de ter um filho gay.
Chorei demais naquela noite. 
Algumas pessoas viram... mas ninguém achou que eu merecia um abraço. 
Nunca mais fui o mesmo depois daquele acontecimento... Soube que não importava o quanto lutasse, eu jamais deixaria de ser “o filho gay”... o elefante branco da casa... a desonra da família. 
Foram muitos os episódios de assédio moral durante a adolescência. Fui rebaixado e degradado diversas vezes e por tantas pessoas da família, que várias vezes eu pedi a Deus para morrer.
Aos 17 anos, talvez como última opção para me resgatar daquela homossexualidade latente, me mandaram a uma psicóloga: a Dra. S. 
Uma senhora maravilhosamente louca... naquela dádiva grandiosa, que às vezes inesperadamente os seres à beira da morte recebem do cosmos, como um bilhete para permanência nessa terra.
Depois de contar sobre um destes episódios, ela curvou o tronco em minha direção para me encarar de perto, e disse:
“Sabe, meu filho, não falo isso para todas as pessoas. Porque as pessoas são burras e só entendem o que querem entender. Mas ninguém tem obrigação de gostar de parente... a gente tem obrigação de gostar de quem trata a gente bem!”
Uau... Existia verdade maior do que aquela?
Saí do consultório leve. Liberado da obrigação de amar quem só me fazia sofrer. Livre do fardo de ser amado... de ser aceito.
Descobri tão jovem, nas várias sessões seguintes, que eu não precisava bater em portas para sempre fechadas... descobri que eu não merecia ser receptáculo de infelicidades alheias e comecei a dar valor a tantas pessoas que me amavam fora de casa. 
Cada um dá aquilo que tem. Cada um ama do jeito como aprendeu ser amado. Como esperar de uma família tão tacanha de amores, a compreensão de ter um filho gay? 
Comecei a prestar atenção em mim... Nos meus talentos. Busquei a minha voz. Contornei florestas inteiras e encontrei fieis amigos. Procurei ocupações que me faziam feliz. Fui tantas vezes sozinho ao cinema... ao teatro... encontrei amor e paz em tantos livros e poetas.
Focando em portas abertas, ouvi elogios de professores, “você escreve bem”. Você é tão bonito... tão educado... Ganhei abraços de pessoas inesperadas.
Quando adulto, já que me era proibido na adolescência, descobri o teatro e modifiquei-me ainda mais. Envolvi-me em abraços de amigos e, juntos, fizemos uma corrente de amor que nos livrou da própria morte.
Hoje, sei que escrevo para que tantas pessoas sintam o meu amor por elas... rabisco parágrafos para jovens que, assim como eu fui no passado, talvez não se sintam amadas em casa... 
Escrevo para que vocês tenham certeza de que um dia... tudo passa... 
Passou para mim. 
Com o tempo – e acreditem, o tempo passa muito rápido –, vocês encontrarão cada vez mais amigos que amarão seus gestos e não se preocuparão com os tons agudos de suas vozes.
Em breve vocês passarão em universidades, ou arrumarão empregos, ou se mudarão para Berlim, Lisboa, Rio, São Paulo, ou terão filhos, ou quaisquer destas reviravoltas loucas que sempre ocorrem nas vidas de pessoas de bom coração... E as memórias ruins serão apenas um lugar de onde vocês tirarão forças para continuar lutando.
Vocês não se importarão com o que seus tios, ou irmãos, ou pais dirão sobre seu corte de cabelo, suas roupas, seus trabalhos, seus namorados... Pois vocês entenderão que as pessoas são muito infelizes e buscam bodes expiatórios... catam pessoas para diminuírem e se sentirem melhores. Mas vocês não permitirão mais isso, pois... que cada um carregue sua própria amargura!
E vocês viverão... e amarão... e serão felizes...
E saberão que a única missão válida nesta terra é ser feliz fazendo o bem.
Acreditem, eu sou! Hoje canto em karaokês online. Tenho um cachorro lindo chamado Godofredo e um namorado, que muitas vezes me tira do sério. Nestes tempos eu escrevo, monto peças teatrais, viajo para muitos lugares, faço cursos de psicanálise e me matriculo em aulas de dança.
Não me importa hoje, se sou mais feliz do que as pessoas que me ridicularizavam no passado. Só me importa se sou feliz o tanto quanto posso.
Muito do que sinto hoje foi graças a Dra. S., que me ensinou a ter orgulho de ser quem eu era. Por isso...
Muito obrigado Dra. S.,
esteja a senhora onde estiver.



P.S.: A propósito eu e minha mãe somos muito amigos hoje em dia. Mas isto é história para um outro texto... qualquer dia... quem sabe...



SAULO SISNANDO
e-mail: saulosisnandoescritor@gmail.com

15 de fevereiro de 2019

*Neste blog e nestes textos, eu estou falando de mim. Sei que a questão LGBTI+ e das demais minorias é plural, por isso sou tão pessoal aqui. Espero que outras pessoas se identifiquem, mas entendo aquelas que viveram outras histórias, outras dores, outras guerras
Estou falando de um tema, mas não ouso falar por todos.
Comentem abaixo, curtam minha página no facebook ou me escrevam.

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