Boa noite, Cinderela.









Uma Belém sombria, colorida por fortes e fechados tons de azul e vermelho. Uma princesa solitária trancafiada numa torre alta. Um bairro povoado por prostituas, travestis e marinheiros. Uma maldição que atinge uma jovem há dezesseis anos. Uma rua, na qual as cartomantes são bruxas e os assassinatos são cometidos com brilhantes punhais de aço. Uma rosa com o poder de nos fazer dormir para sempre e um coração que, trancafiado numa caixa, nos garantirá beleza eterna.




Em junho de 2010, a produtora do Cuíra convidou-me para assinar a dramaturgia do novo espetáculo do grupo – um belo trabalho desenvolvido com os moradores dos arrabaldes do teatro. Com uma sincera e admirável confiança, deu-me livre-arbítrio para escrever a dramaturgia, exigindo apenas que, no palco, estivessem histórias do bairro da Campina.




Por um mês, mergulhei no universo do local, ouvi narrações, fotografei, pesquisei e acompanhei diariamente a oficina ministrada pela diretora Marluce Oliveira.




As histórias eram muitas, de diferentes tempos, com os mais distintos protagonistas. Eram tramas folhetinescas, recheadas de riquezas, belas mulheres, amores proibidos, mortes... Muitas mortes! Contavam-me de madames que perdiam posses por causa de amores bandidos, paixões eternas de apenas uma noite e mulheres poderosas que desejavam ser resgatadas por belos príncipes. Destinos tão mordazes, que matariam de inveja as mocinhas das novelas da Tevê.




Tentando unificar tantas e tão romanescas narrativas numa única dramaturgia, mergulhei no universo dos contos de fada de Perrault, Grimm e Hans Christian Andersen e inspirei-me abertamente no espetáculo “7 – o Musical” de Charles Möeller e Claudio Botelho, que assisti, no Rio de Janeiro, em 2008.




Sem jamais deixar de lado as histórias narradas ao longo de dois meses. Dentre tantas, o conto da prostituta maranhense assassinada por uma rival, a história do rapaz virgem morto no Rola’s Drinks no dia em que passou no vestibular e a trama verídica de uma das prostitutas mais ricas da campina que, traída pelo amante, perdeu todos os bens, passando a viver como mendiga. Tudo alinhavado sob a égide do conto da Bela Adormecida. E não seria irônico uma bela adormecida na Riachuelo? Ou melhor... Já não seria esta rua recheada por estas belas mulheres que dormem?




Com este espetáculo, quis escrever um conto de fadas real... Ou a realidade em forma de conto de fadas. Desejei retratar a campina de uma maneira lírica, lúdica e carnavalesca. “Boa noite, Cinderela” é, como todo conto de fadas, um arquétipo de nossas idealizações e um microssomo da realidade em que vivemos. Um convite a atravessar nossa penosa existência de forma menos dolorosa. É, finalmente, o óbolo que nos fará descer de nossas altas torres e enxergar este bairro e estas pessoas, que são luxuosas, mas sujas. Bonitas e feias. Majestosas e decadentes. Perigosas e adoráveis. Contraditórias... afinal antes de serem da vida, são reais e humanas como todos nós.




Saulo Sisnando
Agosto/2010

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